“Cabo Verde é cultura e o futuro do turismo no país deve observar esta realidade.”

Entrevista com a Dra. Ana Samira Silva Baessa - Diretora dos Museus de Cabo Verde

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O Dia Internacional dos Museus é assinalado a 18 de maio e este ano teve como lema “O futuro dos museus: recuperar e reimaginar”.

Em Cabo Verde a data foi celebrada com um conjunto de atividades socioeducativas organizadas por vários Museus do país, com a abertura do Museu do Café do Fogo e com um Webinar promovido pelo Instituto do Património Cultural, através da Direção dos Museus com o tema “Reimaginando os Museus em Tempos de Pandemia: Desafios e Oportunidades”.

“O Instituto do Património Cultural através da Direção dos Museus tem sob a sua tutela 10 estruturas museológicas, distribuídas em cinco ilhas de Cabo Verde, Santiago, Sal, Brava, São Nicolau e São Vicente. Tratam-se do Museu Etnográfico da Praia, do Museu de Arqueologia, do Museu da Resistência, do Museu da Tabanca, do Museu Norberto Tavares, do Núcleo Museológico Cesária Évora, do Museu do Mar, do Museu do Sal, da Casa Museu Eugénio Tavares e da Casa da Morna Sodade, sendo estes dois últimos inaugurados no passado mês de dezembro.” Fonte: IPC – Instituto do Património Cultural.

Vamos nesta entrevista conversar com a Dra. Ana Samira Silva Baessa – Diretora dos Museus de Cabo Verde, para perceber os resultados obtidos com os projetos traçados no quadro dos Museus de Cabo Verde, bem como os desafios e as oportunidades colocados pela pandemia.

No Relatório recentemente publicado pelo IPC, sobre o número de visitantes nos Museus de Cabo Verde em 2020, lê-se o seguinte:

“Em 2019, a materialização de alguns projetos traçados no quadro dos Museus de Cabo Verde, resultou num aumento de 24% do número de visitantes em relação a 2018, ou seja, um total de 30 mil entradas.

Entretanto, em 2020 o cenário foi o oposto, com uma redução drástica de visitas (mais de 80%) em relação ao ano de 2019, recebendo nas estruturas físicas um total de 3.656 visitas, dos quais a maioria foram estudantes, seguido dos turistas estrangeiros, sendo mais de 90% destas visitas ocorreram no primeiro trimestre do ano.”

Qual a análise que faz destes dados e como é que a Direção dos Museus de Cabo Verde conseguiu, de certa forma, contornar o decréscimo substancial de visitas nos Museus que tem sob sua tutela?

Sim, de facto a pandemia trouxe grandes desafios à gestão dos museus nacionais, pois na sua conceção tradicional, o museu, é criado para estar aberto ao público. Pensar os Museus de portas fechadas, ainda que temporariamente foi uma situação nova para todos os museus a nível mundial.

Segundo um relatório da UNESCO “Museus no Mundo perante a Covid 19”, 90% dos museus a nível mundial foram obrigados a encerrar durante a pandemia e destes 10% poderão não voltar a abrir após a crise.

No nosso contexto, todos os museus foram forçados a um encerramento de três meses, entre Março e Junho, e desde então a afluência de visitantes ainda é muito baixa. Essa fraca afluência deve-se, essencialmente, ao prolongamento da pandemia, com efeitos na redução drástica do número de turistas no país, sendo que este sector representava a volta de 70% dos visitantes; à nova organização do sistema educativo com limitação na realização de atividades extracurriculares, sabendo que este público representava 18% das entradas; e, por fim, ao desaconselhamento de atividades consideradas não essenciais ou urgentes durante todo este período da pandemia. 

Para contornar essa situação, do período de confinamento a esta parte, a Direção dos Museus  implementou certas medidas (algumas já ponderadas antes da pandemia) com vista a assegurar a presença dos museus e transmissão como:

  • A disponibilização das visitas virtuais a 4 dos museus 8 museus, sob tutela do IPC, e o reforço na partilha dos conteúdos nas plataformas digitais, vídeos, histórias dos objetos, gestão dos museus etc; Neste contexto, Cabo Verde faz parte de 5% dos países em África e dos Pequenos Estados Insulares que conseguiram oferecer conteúdos online duramente a pandemia. Estes museus totalizaram 4.260 visitas virtuais em pouco mais de 3 meses.
  • A definição de projetos que pudessem desenvolver-se nas escolas mesmo com algumas condicionantes como projeto “Museu vai à escola”, traduzido na deslocalização do museu dos seu espaço físico para um contacto mais próximo com as escolas e com as comunidades.
  • A itinerância das exposições e palestras para disseminar e ampliar o conhecimento dos museus em diferentes escolas do país mas que podem também percorrer diferentes comunidades;
  • A realização de colónia de férias física e virtual, esta última lançada no verão de 2020.

No passado mês de março foi aprovado no Parlamento a lei que estabelece o quadro jurídico dos museus e da rede de museus em Cabo Verde e que já se encontra em vigor, projecto que formaliza o sector e permite uma nova estrutura jurídica das instituições e actividades museológicas nacionais.  Quais são as oportunidades que esta lei traz aos Museus de Cabo Verde?

A aprovação desta lei traz inúmeras vantagens para o desenvolvimento do sector dos museus como, a possibilidade dos museus enquanto organizações sem fins lucrativos puderem ser objeto de apoios ou financiamentos no quadro da Lei do Mecenato Cultural o que anteriormente não era possível; o facto de preconizar a partilha de responsabilidades entre o Estado e entidades particulares na gestão desse património. Por exemplo, os acervos do Estado podem estar em museus privados ou vice-versa desde que atestado, entre outros, as condições de segurança e conservação. Ainda nesta relação Estado-particulares, a  lei preconiza a redução de custos do processo, nomeadamente com as intervenções arquitetónicas, definição do programa museológico, entre outros.

A legislação garante a autonomia organizativa dos museus e sugere uma certa autonomia financeira o que irá repercutir na melhoria dos serviços prestados, na sua ação educativa e cultural e na sua capacidade de ampliar projetos de investigação e cooperação científica. Da mesma forma, podemos apontar o facto deste instrumento simplificar e formalizar os processos para a instalação e funcionamento dos museus e esclarece os critérios mínimos para credenciação dos mesmos, nomeadamente no que concerne ao cumprimento das funções museológicas, ao acesso, conservação e segurança do acervo. Sendo livre a criação dos museus, a lei clarifica todos os procedimentos necessários para que qualquer pessoa que queira intervir nesta matéria, saiba a que instituições recorrer, que condições deve reunir para avançar com o projeto e que critérios deverá cumprir para a certificação do museu. O objetivo é ter os museus devidamente formalizados e que operem dentro de um quadro legalmente estabelecido.

Em termos práticos esta legislação responde a uma necessidade de formalizar o sector dos museus e criar as condições para o seu melhor desempenho, sobretudo no que concerne à sua conexão a dois sectores importantes do país, a educação e o turismo.

O objetivo é que a curto e médio prazo possamos ter os museus melhor posicionados para responder às demandas e contribuir, positivamente, aos desafios do desenvolvimento sustentável do país.

 A Dra. Ana Samira Silva Baessa é Licenciada em Gestão do Património e pós-graduada em Património, Turismo e Desenvolvimento.  Foi Coordenadora do Gabinete de Gestão da Cidade Velha Património da Humanidade, fez parte da equipa técnica que preparou os projetos de classificação dos Centros Históricos como Património Nacional e foi Coordenadora do Plano de Gestão da Cidade Velha, submetida à UNESCO em 2010. Trabalha no sector desde 2009 tendo vindo a adquirir alguma experiência no domínio da cultura e do património nacional.Considerando a sua experiência e know-how, qual a sua perspetiva sobre o futuro do Turismo Cultural em Cabo Verde?

 A avaliação de Cabo Verde pelo índice de competitividade turística colocou a nu a necessidade de uma maior aposta no sector cultural quando aponta fragilidades a nível da oferta de bens culturais como determinantes à posição ocupada no ranking.

Por isso, na minha opinião, e sem prejuízo do contributo do turismo de sol e praia para o desenvolvimento desta atividade, o futuro do turismo em Cabo Verde terá que passar, indispensavelmente, por uma efetiva aposta no turismo cultural na lógica da necessária diversificação do seu produto.  A cultura cabo-verdiana é singular e oferece um enorme potencial ao país. É o grande diferencial de Cabo Verde em relação aos seus concorrentes e sendo estrategicamente “concebida” pode fazer toda a diferença num país arquipelágico e com grande dispersão territorial. Desde logo pelo impacto mais direto que poderá ter nas comunidades e na melhoria da renda familiar e o facto de envolver um grande número de intervenientes.

Segundo dados da OMT o turismo cultural é um dos sectores que mais cresce a nível mundial. Por isso a aposta na cultura poderá contribuir de forma decisiva para a diversificação da oferta e a melhoria da competitividade do país.

Aliás, já existe uma orientação estratégica neste sentido através do Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável – PEDS que propõem uma nova abordagem à cultura e ao património enquanto motor de desenvolvimento, de geração de empregos, de diferenciação dos territórios, de promoção de identidades regionais e nacionais.

Por outro lado, a crise provocada pela Pandemia da COVID-19 obriga a uma nova abordagem do sector do turismo a nível global e Cabo Verde não será exceção. O turismo foi um dos sectores mais impactados por esta crise e cujos efeitos ainda se prolongam com alguma imprevisibilidade. Eventualmente, o turismo de massas demore mais tempo a retomar o que poderá impulsionar uma aposta em segmentos específicos como o cultural.

Ao longos dos últimos anos tem-se registado no país, inúmeras intervenções no sector da cultura, tanto por parte dos poderes públicos como dos particulares e das Ong´s com projetos estruturantes no sector da cultura na lógica de potenciar o seu contributo para o desenvolvimento mormente no contexto turístico. São exemplo desta intervenção, os projetos financiados pela União Europeia, com resultados em vários municípios e comunidades do país. Esta dinâmica de valorização do património e da cultura, dos museus, da criação artística e do empreendedorismo cultural é de grande valia para a conformação da oferta cultural do país e lança as bases para uma conceção mais alargada e estratégica da cultura no sector turístico.

Cabo Verde é cultura e o futuro do turismo no país deve observar esta realidade.

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