Tudo aconteceu no dia 11 de Dezembro de 2019, ainda sem as notícias do aparecimento da COVID-19, a Morna foi proclamada pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Muito se tem falado e escrito sobre a origem da Morna, género musical e de dança de Cabo Verde, tradicionalmente tocada com instrumentos acústicos, que reflecte a realidade insular do povo de Cabo Verde, o romantismo intoxicante dos seus trovadores e o amor à terra (ter de partir e querer ficar).
Portanto este artigo não pretende contar a história da Morna, mas sim homenagear todos os artistas cabo-verdianos, compositores, interpretes que souberam levar a Morna a ser conhecida internacionalmente por vários artistas, nomeadamente em França e nos Estados Unidos, sendo a mais famosa Cesária Évora. O timbre da voz desta diva conquistou e alargou o público da morna, de Cabo Verde até o Olympia, passando pelo Carnegie Hall, pelo Hollywood Bowl e pelo Canecão.
No dia 11 de Dezembro comemoramos o 2º Aniversário deste gênero musical que é um símbolo nacio- nal e o único gênero que consegue ser largamente transversal a todos os grupos etários, cronologicamente, geograficamente, entre outros.
Falando do gênero musical a morna caracteriza-se por ter um andamento lento, um compasso binário (às vezes quaternário), na sua forma mais tradicional, ter uma estrutura harmónica baseada no ciclo de quintas, enquanto que a estrutura poética se organiza em estrofes que vão alternando com um refrão. A morna é quase sempre monotónica, ou seja, composta apenas numa tonalidade. Composições que utilizam mais do que uma tonalidade são raras, e geralmente trata-se de passagens de uma tonalidade menor para maior, ou vice-versa.
A temática da Morna é variada e para além dos temas universais como o amor, são também abordados temas próprios da realidade cabo-verdiana, como a partida para o exterior simbolizado no tema muito cantado, – A PARTIDA-, mas também a morna marca o regresso, a saudade, o mar, entre tantos outros temas, dos quais muitos introduzidos pelo “pai da Morna”, no século XXI , Eugénio Tavares, bravense que introduziu, como poeta e compositor, o romantismo, o lirismo que continua ao longos dos anos. Em termos de instrumentalização o violão é por excelência um instrumento para acompanhar esse romantismo e o lirismo da morna. Outro instrumento também muito usado para acompanhar a Morna é o violino (Rabeca em Cabo Verde), como acordes mais nostálgicos. O piano também é outro instrumento usado para acompanhar a Morna, bem como o clarinete, o saxofone como também outros instrumentos de percussão.
A partir da instrumentação vem a dança que é feita aos pares num romantismo estonteante e é efectuada imprimindo duas oscilações do corpo, para um lado, num compasso da música, enquanto que no compasso seguinte as oscilações são feitas para o outro lado.
Segundo autores e pesquisas feitas a Morna pode ser dividida em vários períodos que enumeramos:
A Origem da qual ninguém sabe ao certo donde surgiu, mas tudo indica que nasceu na Ilha da Boa Vista, no Séc.XVIII, mas segundo dados não existem registos musicológicos. De acordo com Alves dos Reis, durante o Século XIX, com a invasão de polcas, mazurcas, galopes, contradanças e outros géneros musicais em Cabo Verde, a morna não se deixou influenciar, deixa entender que já nessa altura a morna era uma forma musical adulta e acabada.
Já o Vasco Martins – Música Tradicional Cabo-verdiana Vol.I a Morna –faz remontar a morna a um género musical — o lundum — que teria sido introduzido em Cabo Verde no séc. XVIII dos antigos reinos do Kongo e de Ngola à Boa Vista. Existe também uma relação entre a morna e outro género musical que já existia nas ilhas, os choros, que são melopeias vocálicas cantadas em certas ocasiões, de que fazem parte as cantigas de trabalho e os choros fúnebres. A Morna seria então um cruzamento dos choros com o lundum, com um andamento mais lento e uma estrutura harmónica mais complexa. Alguns autores afirmam que se acelerarmos o andamento de algumas mornas mais antigas da Boa Vista, ou até da Morna Força di cretcheu de Eugénio Tavares, obtemos algo muito semelhante ao lundum.
As pesquisas e estudos referem que a partir da Boa Vista a Morna teria gradualmente passado para as outras ilhas e que nessa época, a morna ainda não teria a temática romântica que tem hoje, e nem teria o carácter nobilizante que lhe foi conferido depois. E afinal o que significa a Morna – a palavra deriva do inglês to Mourn, que significa lamentar ou chorar os mortos. Para outros, como Gilberto Freire em 1956, palavra tem origem no francês morne, que é o nome dado a colinas ou morros nas Antilhas francesas, onde são interpretadas as chansons des mornes. Mas para a maioria, a palavra «morna» corresponderia ao feminino da palavra português morno, numa alusão ao carácter suave e dolente da morna.
O 2º Período marca o momento que Eugénio Tavares, no início do Séc. XX confere Morna o carácter romântico que perdura até hoje. E é da Brava que a Morna adquiriu um andamento mais lento que a Morna da Boa Vista e a poesia tornou-se lírica com os temas a incidir, sobretudo no amor e em sentimentos provocados por esse mesmo amor.
O 3º Período, de acordo com os autores das obras sobre a Morna, marca os anos 30 e 40 em S. Vicente onde a Morna adquiriu características especiais pela mão do B.Leza. Segundo a obra Literatura Tradicional de 196 de Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo a Morna da Brava era muito apreciados em S. Vicente e segundos relatos populares a chegada de Eugénio Tavares à S.Vicente, este poeta / compositor foi recebido em apoteose pela população mindelense. Esse período foi o momento de enriquecimento da Morna em S. Vicente por intermédio do compositor Francisco Xavier da Cruz, mais conhecido por B. Leza, que sob influência da música brasileira, segundo Vasco Martins, introduziu os chamados acordes de passagem, popularmente conhecidos por «meio-tom brasileiro» em Cabo Verde. Graças a esses acordes de passagem, a estrutura harmónica da morna não se restringiu aos acordes do ciclo de quintas, mas passou a integrar outros acordes que servem de transição aos acordes principais.
Essa introdução dos meios-tons, por mais simples que possa parecer, deixou a sua marca profunda na morna, marca essa que se transmitiu posteriormente à coladeira.
Outra inovação foi o facto de este período coincidir sensivelmente com o movimento literário Claridade, e, por conseguinte houve um alargamento na temática, que deixou de incluir essencialmente temas ligados ao Romantismo, para incluir temas mais realistas.
O 4º período advém da introdução dos meios-tons que deu origem a coladeira entre os anos 50 e 70, portanto um novo gênero musical que atinge a sua maturidade e dos quais muitos compositores experimentou esse gênero e trouxeram assim grandes inovações em termos musicais para a Morna, com os compositores a compor na trilha de Eugénio Tavares e B.Leza.
Nessa época muita coisa sucedeu e destaca-se o surgimento de movimentos de contestação política colonial portuguesa que ganhou contornos de música de intervenção de carácter político e é também nessa época que surgiu outros gêneros musicais internacionais como o bolero, a samba, a canção francesa e a partir dos anos 60 a instrumentalização eléctrica e a divulgação internacional da Morna, através das interpretações no exterior, como também na produção discográfica.
O 5º período de acordo com Gonçalves Kabverd Band em 2006, nessa época houve um aproveitamento dos compositores com maiores liberdades para conferir à Morna características pouco habituais, donde apareceram uma grande liberdade na sequências de acordes, as estrofes musicais nem sempre têm um número rígido de versos, na melodia as reminiscências do lundum praticamente desapareceram, e alguns compositores tentam a fusão da morna com outros géneros musicais.
As pesquisas indicam que a Morna possui 3 variantes: a Morna da Boa Vista, da Brava e de S.Vicente. O da Boa Vista caracteriza-se por um andamento mais rápido e os temas abordam normalmente as críticas sociais e é muito parecido com o Lundum que já falamos neste artigo. O estilo Bravense está na origem da Morna conhecida hoje, com andamento lento com características românticas com uso de rimas na poesia. E este estilo cativou os compositores de Fogo e Brava.
Já a Morna de S. Vicente é uma sucessão da Morna da Brava com o memso andamento, mas as sequências de acordes foram enriquecidas com os acordes de passagem. A temática também foi alargada, não incluindo apenas temas românticos, e a poesia não é tão rígida nem faz tanto uso das rimas como na morna bravense.
Morna Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade e o Turismo
Apesar da abertura política em 1991, onde se verificou uma grande reestruturação para o setor do património nos domínios da Cultura e do patrimônio, em relação a sua ligação intrínseca com o turismo pouco foi feito para que este setor fosse um produto turístico a sério e de forma sustentável.
De 2011 até a 2016 a VII Legislatura determinou no seu programa “A Salvaguarda do Património Nacional como uma exigência da consciência da Nação. Por isso, o Governo tomou em devida conta a defesa e a afirmação do património material e imaterial de Cabo Verde”. Neste período houve uma grande campanha de classificação dos bens a Categoria de Património Nacional: 5 Centros Históricos, e dois bens imateriais (morna e Boas festas). Mas a ligação ao turismo nada se fez de concreto.
Na legislatura 2016-2021, o principal objetivo para o sector foi “Promover o Turismo Cultural através da integração dos dois sectores, com o objetivo de mobilizar nacionais e estrangeiros para o conhecimento das tradições e do património material e imaterial do país, promovendo os locais históricos, com destaque para a Cidade Velha, e o turismo interno, a par da promoção cultural no mercado internacional”.
Na legislatura que agora se iniciou 2021-2026 se evidencia uma visão estratégica alinhado com a nova agenda de desenvolvimento global assumido no quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 particularmente o objetivo 11.4 dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), ou seja, fortalecer esforços para proteger e salvaguardar o Património Mundial, inserindo-o nas dinâmicas socioculturais das comunidades onde se patenteiam e do PEDS (Plano Nacional de desenvolvimento sustentável) através da integração do novo conceito de valorização no quadro do desenvolvimento sustentável.
No quadro destas agendas, Cabo Verde ambiciona a integração da Morna na Lista do Património Imaterial da Humanidade (candidatura submetida em Março) através do qual se procura universalizar a sua identidade cultural e a “crioulidade” presentes na sua história e na sua cultura, mormente na língua crioula cabo-verdiana símbolo maior da mestiçagem, cultural de que foi fruto no século XV. Este património que é partilhado com a humanidade, através do atlântico desde o século XV, é, portanto o legado que cabo verde quer continuar a partilhar e deixar às futuras gerações.
E para continuar a partilhar esse legado com a geração futura e para que seja um complemento e chamariz para o turismo é necessário apostar mais na criação de produtos culturais e turístico, onde a Morna será a cabeça de cartaz a par com a gastronomia. Estes dois elementos inteiramente ligados a cultura cabo-verdiana a ser bem estruturada, bem divulgada e bem promovida quer internamente, quer no estrangeiro, será uma mais-valia para a sustentabilidade do nosso turismo e sustentável também para a nossa economia e para as regiões rurais onde a cultura está bem implantada e onde a nossa gastronomia típica complementa toda a nossa história.