Os avanços tecnológicos e económicos registados nas últimas décadas, além de terem provocado mudanças nas sociedades, resultaram também em uma nova forma de identificar, explorar, avaliar e conservar os recursos ambientais a partir da compreensão de que estes determinam não só o fornecimento de matéria-prima, mas, também, lazer, descanso e melhor qualidade de vida para os atuais indivíduos que compõem a sociedade, além de se constituírem no mais importante legado para aqueles que o herdarão. O turismo, por ser uma atividade que tem como objetivo proporcionar descanso e diversão faz com que as várias dimensões que o formam – como comercialização, transporte, hospedagem, alimentos e bebidas, infraestrutura e serviços – se constituem como um sistema onde as variáveis envolvidas interagem entre si, podendo resultar em reflexos positivos e/ou negativos no meio económico, social e, principalmente, ambiental (OLIVEIRA, ASSIS, TAVARES, FROTA, & SANTANA, 2016). Neste contexto, ao mercado turístico, tem sido incorporado o paradigma da sustentabilidade como forma de conduzir seu desenvolvimento para utilizar os recursos naturais, sociais e económicos disponíveis, prever e controlar os impactos daí resultantes, surgindo assim o conceito de turismo sustentável.
Apesar dos fortes impactos negativos que esta atividade tem sentido nos últimos meses, fruto dos efeitos da pandemia provocada pelo COVID19, o turismo continua sendo uma das atividades que a nível mundial, aproximando-se da indústria petrolífera e automóvel.
Porém, segundo Ferreira (2008), apesar das contribuições económicas e sociais do turismo, são observados impactos sobre o meio ambiente, nomeadamente: Alto consumo de energia contribuindo para as emissões de gases de efeito estufa, Grande consumo de água durante a temporada turística colaborando para a escassez e/ou falta do recurso; Uso e ocupação do solo muitas vezes de forma desordenada e sem planeamento, provocando a remoção de vegetação e alterando cursos d’água; Perda de biodiversidade, destruição de habitats e da paisagem e alteração de dunas costeiras; Uso de contaminantes como óleos, lubrificantes e produção de dejetos que tem poluído o ar, água e solo; Produção de lixo acima da capacidade da coleta e correto descarte, etc.
Os impactos são consequência de um processo complexo de interação entre os turistas, as comunidades e os meios recetores. Muitas vezes, tipos similares de turismo provocam diferentes impactos, de acordo com a natureza das sociedades nas quais ocorrem. Segundo Ruschmann (1997) estes podem ser reversíveis quando detetados no seu início, ou antes, e irreversíveis quando não lhes é dada a devida atenção e, no momento que se percebe isso já será tarde demais para a sua reversão. Os impactos da atividade turística referem-se à gama de modificações ou à sequência de eventos provocados pelo processo de desenvolvimento turístico nas localidades recetoras.
Para ser sustentável, o turismo precisa preservar os recursos naturais, históricos e culturais para garantir o uso futuro. Além de satisfazer os visitantes, a atividade turística não pode gerar danos ambientais ou socioculturais. Portanto, garantir a sustentabilidade do turismo tornou-se o desafio principal daqueles que estão comprometidos com o desenvolvimento e o gerenciamento dessa atividade tão importante para a economia e para a sociedade em geral.
Encontrar o equilíbrio entre os interesses económicos do turismo e o desenvolvimento sustentável da actividade não é tarefa fácil, principalmente porque seu controle depende de critérios, valores subjetivos, de uma política ambiental e turística adequada, o que ainda não está presente em muitos destinos turísticos (FERMINO, FERMINO, & RHODEN, 2017).
Dessa forma há uma crescente preocupação em se avaliar os impactos do turismo sobre o meio ambiente. Essas preocupações estão centradas especialmente no processo de degradação que pode afetar os recursos naturais que são utilizados no desenvolvimento destas atividades e a irreversibilidade deste processo. De entre os recursos naturais impactados pelo turismo a água, pela sua importância enquanto um bem primordial na vida na Terra justifica o aprofundamento de estudos e pesquisas com vista a um melhor conhecimento dos modelos mais adequados para cada contexto socio-ambiental.
Neste sentido este estudo teve como principal objetivo analisar, através do consumo da água, os desafios e problemas que a sustentabilidade da atividade turística enfrenta para poder se manter e os impactos que a sua expansão tem provocado sobre o consumo de água na ilha da Boavista. Apesar de ser a terceira ilha do país em dimensão, Boavista apresenta das piores condições hidrológicas quando comparadas com as outras ilhas do arquipélago. Cerca de 58% da população residente não tem acesso à rede pública de abastecimento de água e abastece com recursos a autotanques, chafarizes ou outras formas menos seguras de acesso á água. Entretanto a ilha se encontra na linha da frente em termos de procura turística, com uma média anual de entradas superior a 200 mil visitantes por ano, apenas ultrapassada pela ilha do Sal.
Metodologia e analise de dados
Para o levantamento de dados necessários para a pesquisa implementamos uma sequência de ações que incluiu o levantamento bibliográfico e documental, a recolha de dados segregados sobre a produção e o consumo de água junto da Empresa de Água e Energia da Boavista (AEB) e a realização uma sequência de entrevistas semiestruturadas com os moradores, lideranças comunitárias e organizações da sociedade civil, gestores de empreendimentos turísticos, dirigentes e técnicos da Câmara Municipal, Sociedade de Desenvolvimento Turístico das Ilhas da Boa Vista e Maio, e AEB.
Conforme os dados fornecidos pela AEB constamos que tem havido um aumento crescente em termos de consumo de água na ilha da Boavista a uma média de 5% por ano. Paralelamente o número de entradas cresceu a uma média de 4% no mesmo intervalo temporal, sendo que o ano de 2016, tal como no consumo de água, foi o ano que registou o maior aumento (11,8%). Portanto a evolução da entrada de turistas apresenta um comportamento semelhante ao consumo da água.
A forte correlação existente entre a atividade turística e o consumo de água é ainda reforçada ao analisarmos os dados de consumo por setores de atividade. Tomando como exemplo o ano de 2017 constatamos que 70,6% do total da água consumida na Boavista foi destinada às unidades hoteleiras. Os demais setores representaram apenas perto de 30% do consumo total de água da ilha. Os moradores e as representações das organizações da sociedade civil quando questionados sobre como é que a ilha se encontra atualmente em termos de consumo e abastecimento de água foram unanimes na afirmação de que há problemas quer na qualidade quer na equidade no acesso à água.
A falta de qualidade é referenciada nos casos em que a água disponibilizada apresenta níveis de salinidade acima dos parâmetros recomendados, mas também o sistema de transporte, armazenagem e distribuição foram considerados como sendo deficientes, sobretudo nas zonas rurais e nos bairros de assentamentos informais. Portanto, o aumento do turismo não tem trazido melhorias no abastecimento e qualidade da água disponibilizada à população. Todos reconhecem que a ilha teve melhorias em vários domínios, mas estas melhorias não têm tido o devido impacto sobre as pessoas. Apesar da criação de um conjunto de instrumentos de gestão (delimitação das Zonas de Desenvolvimento Turístico Integrado, criação de Planos de Ordenamento Turísticos, etc.) não há grandes expetativas que os mesmos irão ser devidamente implementados e que se reverterão na melhoria das condições de vida dos residentes na ilha. Relativamente aos riscos de agravamento das condições de acesso à água face às perspetivas de crescimento da população e aumento do fluxo de entrada de turistas nos próximos 10 anos, as entidades gestoras da ilha (CMB e SDTIBM) também concordam que é preciso que haja melhorias na planificação e execução dos projetos de expansão do parque hoteleiro da ilha. Contudo consideram que a responsabilidade maior cabe à empresa responsável pelo abastecimento de água e energia da ilha (AEB). De uma forma geral as grandes unidades hoteleiras, com capacidade superior a mil camas apresentam uma média de consumo de água anual por cama superior às demais categorias. Podemos assim afirmar que quanto maior for o empreendimento mais água consome por cama e por hóspede.
De todo modo é importante termos sempre em conta que o número de camas é um elemento importante na análise do consumo de água, mas que não é o único determinante na definição do padrão de consumo de uma unidade hoteleira. Políticas de gestão e poupança de água, serviços e recursos adicionais como piscinas, jardins, etc., representam seguramente um papel importante na definição do padrão do consumo de cada estabelecimento.
Considerações finais
Apesar de ter ficado evidente que há outros elementos a se ter em conta em futuros estudos, podemos considerar que existe uma relação direta entre o tamanho dos empreendimentos e o nível de eficiência no consumo de água, ou seja, quando maior é o empreendimento mais probabilidade tem de consumir mais água por cama e por hóspede. Relativamente às entrevistas realizadas com os operadores foi possível reconfirmar a interpretação que já tínhamos feitos dos dados de consumo de água fornecidos pela AEB, ou seja, há claras diferenças entre os grandes hotéis e as pequenas unidades hoteleiras. Apesar de estar muito longe dos valores apontados em estudos internacionais que indicam uma média de consumo à volta de 5 mil litros por hóspede/noite, os hotéis apresentam valores muito elevados para a realidade nacional. Para os gestores dos grandes empreendimentos é mais barato utilizar os sistemas públicos de distribuição de energia elétrica e abastecimento de água do que implementar sistemas próprios tendo em conta os custos de instalação, manutenção dos equipamentos e contratação de técnicos especializados. Por isso encontramos poucos casos de empreendimentos com sistemas internos de produção de água e mesmo os que o possuem afirmam não compensar a montagem de um sistema que os dispense totalmente da aquisição de água na AEB. Em relação às medidas que os operadores têm implementado com vista à diminuição do consumo da água junto dos colabores e clientes as unidades hoteleiras da ilha da Boavista apresentam um comportamento em tudo idêntico à que a literatura sobre esta temática tem apontado em outras paragens, ou seja, há maior aposta na sensibilização do cliente e menos investimento na implementação de programas de poupança de água junto dos seus colaboradores.
Assim, embora essas medidas possam ser potencialmente eficazes, elas são abordagens passivas e de alcance limitado. Com base no quadro apresentado podemos concluir que o turismo desempenha um papel relevante na disponibilidade hídrica da ilha da Boavista. Caso se venha a confirmar o actual cenário de crescimento da actividade turística sem que haja melhorias na qualidade e no acesso à água, poderá acentuar-se os conflitos pelo uso da água entre os empreendimentos turísticos e os demais segmentos da sociedade Boavistense, sobretudo os grupos sociais mais vulneráveis. Se por um lado o turismo é frequentemente visto como um meio para diversificação da economia das ilhas, por outro, é um facto que essa mesma atividade tem um potencial significativo para degradar os recursos e desencadear conflitos locais.
Por forma a diminuir os efeitos negativos da atividade, é necessário que se implemente uma gestão integrada dos recursos naturais da ilha. Sendo assim, a conservação e a correta gestão dos recursos hídricos devem ser encaradas como fundamentais na promoção do desenvolvimento sustentável do turismo. Para que a atividade turística desenvolvida na Boavista seja efetivamente sustentável é fundamental que se implemente mecanismos de participação informada de todos os stakeholders relevantes (residentes, organizações da sociedade civil, autoridades, operadores, etc.), assim como uma liderança política forte para assegurar uma ampla participação e a criação de consensos sobre os vários desafios que a ilha enfrenta atualmente. A prossecução da sustentabilidade do turismo é um processo contínuo e que requer a constante monitorização dos seus impactos e a atempada introdução das medidas necessárias em termos preventivos e/ou corretivos.
Referencias bibliográfica
FERMINO, F. B., FERMINO, G. C., & RHODEN, A. C. (out./dez. de 2017). Os impactos das atividades turísticas, recreativas e esportivas na bacia hidrográfica do rio das antas, bacias contíguas e afluentes do rio peperi-guaçu. R. gest. sust. ambient, 6, pp. 465-485.
FERREIRA., E. (2008). O turismo sustentável como factor de desenvolvimento das pequenas economias insulares: o caso de Cabo Verde. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTATISTICA. (2007). Questionário Unificado de Indicadores Básicos de Bem-estar – QUIBB. Praia: INE
OLIVEIRA, A. G., ASSIS, O. F., TAVARES, J. C., FROTA, A. J., & SANTANA, J. F. (5 de dezembro de 2016). Turismo e Desenvolvimento Sustentável em Morro de São Paulo/BA, Brasil. ENGEMA, p. 16. Obtido em 24 de Fevereiro de 2018, de http://engemausp.submissao.com.br/18/anais/arquivos/436.pdf
RELATORIO DOS DADOS DO CONSUMO DA AEB de 2014 a 2018
RUSCHMANN, D. (1997). Turismo e Planejamento Sustentável. Campinas, São Paulo: Papirus.