Vida difícil, vida cansod: o esquecimento paira na Ribeira da Barca.

Por Inês Alves e Lara Plácido

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Impact é o nome de um sistema construtivo adaptado à realidade cabo-verdiana, que promove a dignidade no acesso à habitação e ao trabalho com uma reflexão paralela sobre o modo como é feita a construção nas últimas décadas.

Este é um projecto que se formaliza ao ser selecionado para o Salão Created in Cabo Verde da URDI2020, promovido pelo CNAD – Centro Nacional de Artesanato e Design, e que sintetiza problemáticas extensamente abordadas por Inês Alves e Lara Plácido, arquitectas portuguesas, residentes na ilha de São Vicente desde 2015. Surge assim um primeiro elemento construtivo com enfoque no problema da habitação e da autoconstrução incontornável no território, materializando-se num bloco maciço de 20, e de encaixe, que possibilita uma maior segurança e rigor na construção. Paralelamente, é proposta a aplicação de uma parte de plásticos e vidros triturados no traço da argamassa com vista à redução dos inertes (areia e cascalho). Por um lado, isto possibilita a redução do impact ambiental da construção e, por outro, propõe prolongar o tempo de vida dos resíduos sólidos urbanos para os quais ainda não existe um tratamento sistematizado no país.

Em 2021, impact evolui para um projecto participativo, sobretudo com mulheres da apanha de inertes do interior da ilha de Santiago. Esta ilha, a maior do arquipélago e na qual se localiza a capital do país, a cidade da Praia, trata-se de um território que concentra uma maioria expressiva da população e onde, ao longo das últimas décadas, se tem dependido dos inertes provenientes da natureza, sendo eles das orlas marítimas e/ou dos leitos de ribeira. O boom construtivo da década de 60, intensificada com o pós-independência em 1975, foi responsável por desencadear uma forte procura de areia e cascalho para a construção em betão armado e para a produção de blocos em cimento, fundamentais para cumprir a demanda construtiva que se impôs.

Num país onde cerca de 30,2% das famílias monoparentais são chefiadas por mulheres – contra 6,5% por homens (INE, 2017) associa-se a falta de perspectiva de vida nos territórios mais isolados do interior de Santiago, onde se conjuga a tendência para os baixos níveis de escolaridade, para a gravidez precoce associada ao abandono parental, bem como à falta de alternativas de trabalho e de poder de compra, levando a que um sem número de mulheres chefes de família tenha dependido da extração de areia nas últimas gerações para sobreviver. Apesar de se tratar de uma actividade insegura, não legislada e mal paga1 foi dessa que se dependeu, também, ao longo de décadas para a construção das principais cidades do país.

Em 2002, com o Decreto-Lei nº 2/2002, de 21 de Janeiro, chegou a proibição da extracção e exploração de areia nas dunas e praias interiores, na faixa costeira e no mar territorial. Em Fevereiro de 2006 é feito um acordo com a Central de Britagem Cabo Verde, SA (CBCV) para o abastecimento do mercado nacional.

A proibição da apanha de areia e o posterior acordo para o fornecimento de inertes provenientes de britadeira desencadeou uma queda na procura levando um sem número de mulheres chefes de família a uma situação de extrema vulnerabilidade, num momento em que o seu trabalho deixou de ser útil e ao qual se sobrepuseram outros interesses económicos – facilmente mascarados pela tendência mundial para os assuntos relacionados com o ambiente.

A precariedade e insegurança da actividade da apanha de inertes que ainda hoje se faz – apesar da sua ilegalidade e queda na procura – serviu de ponto de partida para a elaboração de uma nova ramificação do projecto impact que tem como principal objectivo trabalhar sobre a dignidade de vida e de trabalho dessas mulheres. Nesse sentido, integrado no Porto Design Biennale de 2021, o projeto impact propôs-se trabalhar ao longo de 3 meses com as mulheres da extração da Ribeira da Barca, concelho de Santa Catarina, no interior da ilha de Santiago, segundo uma abordagem etnográfica e uma prática de co-design experimental.

Ribeira da Barca trata-se de uma pequena vila piscatória, onde se localizou o principal porto da ilha estabelecendo-se até à primeira metade do século XX como uma localidade próspera e de grande movimento de gentes e de mercadorias. Actualmente, a principal actividade masculina, a pesca, encontra-se em queda devido aos acordos estalecidos nos últimos anos com a União Europeia para a captura de peixe com grandes embarcações, frente às quais os pequenos botes dos pescadores locais não conseguem fazer frente. Para, além disso, a extração de inertes na orla marítima tem vindo a desencadear desequilíbrios nos ecossistemas costeiros levando à perda de habitats marinhos.

Apesar de se localizar a apenas 16 km da Assomada, a principal cidade do interior da ilha, não existe uma recolha regular dos resíduos sólidos urbanos. Os principais pontos de recolha de inertes, a principal actividade feminina, são a praia de João Gago, no Charco – a cerca de meia hora da vila – e na ribeira, por onde são escoadas as águas pluviais na época das chuvas e, onde ao longo do resto do ano, se acumulam todo o tipo de lixos do quotidiano.

Através de máquinas de trituração de plástico caseiras, experimentamos processar alguns dos resíduos sólidos urbanos aí produzidos para testar a sua quantidade na produção da argamassa. Paralelamente foi desenvolvido um processo criativo de co-design com as mulheres até à fase de prototipagem onde se trabalhou sobre uma lajeta de pavimento com base na reinterpretação do padrão do panu di téra.

Com o objectivo de explorar uma actividade alternativa para as mulheres da apanha da areia da Ribeira da Barca, procuramos trabalhar uma peça objectiva, com um custo de produção estabilizado e um valor económico associado que possa vir a servir para estimular a economia circular local e ser um foco de interesse para os agentes decisores do país, responsáveis pelas obras de pavimentação de lugares e dos municípios, numa iniciativa que se alinha, não só, com as agendas municipais, como também, com documentos estruturantes, como é o caso da Agenda 2030 e África 2063.

Depois de 3 meses na comunidade – e com um traço de argamassa estabilizado – pretendemos dar continuidade ao projecto procurando contrariar tentativas anteriores que incidiram sobre alternativas geradoras de rendimento para essas mulheres sem que nunca se tenham revelado consequentes. Neste sentido, estamos a trabalhar numa segunda fase do projecto na qual esperamos vir a poder contar com novos parceiros que apoiem a iniciativa na adquisição de maquinaria adequada a uma produção de lajetas mais industrial (e menos caseira).

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